Os Discípulos (Eugene Burnand, 1898)

Os Discípulos (Eugene Burnand, 1898)

quinta-feira, 3 de junho de 2010

"Pode um homem nascer de novo, sendo velho?"

"(Cristo e Nicodemos: Jacob Jordaens)"
Introdução aos Exercícios da Fraternidade de CL - Julián Carrón
Rímini, Itália, 23 de abril de 2010 - São Paulo, Brasil, 28 de maio de 2010


Todos chegamos mais ou menos conscientemente movidos por um desejo, por uma espera, por uma urgência de que algo aconteça na nossa vida que a renove, que a faça mover se está parada, que vença aquele ceticismo que se insinua dentro de nós paralisando-nos, que introduza um respiro que nos liberte do sufocar nas circunstâncias.
Sabemos bem que o único que introduziu esta novidade na história é Cristo. Viemos para cá movidos por aquela esperança que Ele, um dia, suscitou em nós, em ti, em mim, por aquele abalo que nós sofremos e que carregamos conosco desde que aconteceu. Mas quantos aspectos da nossa pessoa, da nossa vida esperam ser mudados por Ele!
Por isso, invocamos o Espírito para que Cristo penetre sempre mais em cada fibra do nosso ser, nos torne sempre mais partícipes daquela comoção do Ser, que o Mistério – “A fonte do ser está em Ti” – se dignou compartilhar conosco.

Oh, vinde Espírito

Começo lendo o telegrama que nos foi enviado pelo Santo Padre: “Ocasião Exercícios Espirituais Fraternidade de Comunhão e Libertação sobre o tema ‘Pode um homem nascer de novo sendo velho?’ Sumo Pontífice dirige aos participantes afetuoso pensamento e enquanto espera que providencial encontro suscite renovada fidelidade a Cristo única fonte de esperança por um fervoroso testemunho evangélico invoca copiosa efusão luzes celestes e envia a V. Revma., aos responsáveis Fraternidade e todos participantes especial bênção apostólica. Cardeal Tarcisio Bertone, Secretário de Estado de Sua Santidade”.

Saúdo a cada um de vocês e a todos os amigos que nos acompanham ao vivo, a partir de tantos países.

Cristo ressuscitou! Este é o anúncio que, incansavelmente, por séculos, a Igreja dirige a nós. Este é o acontecimento que domina a história, um evento que nenhum erro nosso ou dos nossos irmãos pode eliminar e que todo o mal que possa acontecer não pode cancelar. Este acontecimento é o motivo da nossa esperança; portanto, este acontecimento é que deve dominar em nós desde o primeiro instante destes dias: a Sua presença ressuscitada. Não seria adequado a todos os fatores do real, agora, um olhar sobre a nossa vida, sobre o sentimento que temos de nós mesmos, sobre o real e sobre o mundo, que não partisse deste reconhecimento; seria mentiroso, porque faltaria o fator decisivo de toda a história. Não existe uma novidade maior, nunca existiu uma novidade maior do que o acontecimento que Cristo ressuscitou. Por isso, na medida em que nos deixamos invadir totalmente por esta Presença viva, nos deixamos dominar por esta verdade – que é um acontecimento, não um pensamento criado por nós, mas um evento acontecido na história –, nós vemos mudar o sentimento que temos de nós mesmos.
Encontramo-nos juntos nestes dias para vivê-los sob a pressão desta comoção, sob a onda toda carregada desta comoção: Cristo morreu e ressurgiu para nós. Peço-lhes que Lhe deixem espaço, quer dizer que nos deixemos arrastar por este evento; não consintamos que permaneça em nós apenas como palavra. Aconteceu: que luz, que respiro, que esperança traz para a vida este acontecimento! É o sinal mais evidente e mais potente da ternura do Mistério por cada um de nós, desta caridade sem limites de Deus pelo nosso nada (inclusive a nossa traição).
É a Sua presença vitoriosa no meio de nós que nos impulsiona a continuar o nosso percurso para tentar superar sempre mais a ruptura entre o saber e o crer, para que este acontecimento reconhecido pela fé determine a vida mais do que todas as outras coisas. Se, pelo contrário, este acontecimento permanecesse apenas ao nível da piedade e da devoção, seria como se não tivesse existido, como se não tivesse toda a densidade de realidade para mudar a vida, para incidir sobre a vida; e então ficaríamos determinados por todas as outras coisas, que nos atropelam, que nos confundem, que nos desencorajam, que nos impedem de respirar, de ver, de tocar com a mão a novidade que Cristo ressuscitado introduziu e introduz na nossa vida.
Partimos, há dois anos, da fé, que tem como origem – todos se lembram – “um ponto de partida fora de nós”: encontrar-se com uma Presença excepcional. A fé é o reconhecimento desta Presença excepcional, tornada carnalmente presente hoje pelas testemunhas, pelo povo cristão, pela Igreja, que seria impossível se Ele não a gerasse constantemente. Mas, no ano passado, aprofundamos que, apesar de termos visto tantos acontecimentos excepcionais, apesar de termos tantas testemunhas diante de nós, frequentemente, depois de um instante, parece-nos que tudo desaparece; e identificamos a razão disso naquela ruptura entre o saber e o crer que se manifesta na redução da fé a projeção de um sentimento, a uma ética ou a uma forma de religiosidade estranha e oposta ao conhecimento. A redução está em nós: a fé não é mais concebida e vivida como um percurso de conhecimento de uma realidade presente, e isto deixa-nos fracos e confusos como todos. Uma fé que não é conhecimento, que não é reconhecimento de uma Presença real, não serve para a vida, não funda a esperança, não muda o sentimento que temos de nós mesmos, não introduz um respiro em cada circunstância. Identificamos o aspecto crucial da dificuldade na falta do humano: “O que falta entre nós não é a Presença (estamos rodeados por sinais, por testemunhas!); falta o humano. Se a humanidade não entra em jogo, o caminho do conhecimento fica paralisado. Amigos, não falta a Presença, falta o percurso”, o percurso introduzido pela curiosidade diante desta Presença, com a qual queremos entrar sempre mais num conhecimento aprofundado.
Depois de um ano, há sinais que tornam evidente que a ruptura entre saber e crer não foi ainda superada.
O primeiro sinal é que não se entende o nexo entre o acontecimento cristão e o humano: continuamos a percebê-los como exteriores um ao outro. Meses atrás, diante da minha insistência sobre o trabalho a ser feito, sobre a experiência, uma pessoa me disse que, no início, o Movimento a tinha tocado como encontro com algo de objetivo fora de si, de forma que não entendia por que eu, naquele momento, insistisse tanto sobre o trabalho. Então, tive que lembrá-la de onde havíamos partido: o deparar-se com uma presença; depois disso tudo desaparecia. Se esta dificuldade permanece, quer dizer que não entendemos a relação que existe entre o acontecimento cristão e o movimento do eu, não se entende que o sinal de que eu fiz um encontro é que começo a trabalhar, porque o meu humano é despertado. O trabalho é o sinal mais evidente de que o cristianismo é um acontecimento, ou seja, que acontece em mim algo que me desperta.
O segundo sinal é que o acontecimento cristão não produz uma mentalidade nova. Aconteceu-me neste verão escutar alguns dos nossos amigos estrangeiros que diziam como, diante de certos acontecimentos, se via que a mentalidade da origem é mais determinante, mais forte do que a mentalidade que nasce do encontro: diante dos acontecimentos da vida e do mundo a reação de tantos de nós é mais conforme à mentalidade de todos do que à mentalidade que o carisma do movimento expressa. Tendo tido, neste ano, a oportunidade de visitar tantas comunidades do mundo, vi isto em todos os lugares.
É como se víssemos sobre nós os efeitos daquilo que Charles Péguy descreve de modo tão sugestivo: “Pela primeira vez, pela primeira vez depois de Jesus, vimos, sob os nossos olhos, estamos para ver um mundo novo surgir, senão uma cidade; uma sociedade nova formar-se, senão uma cidade; a sociedade moderna, o mundo moderno; um mundo, uma sociedade constituir-se, ou pelo menos ser montada, (nascer e) crescer, depois de Jesus, sem Jesus. E o que é mais assustador, meu amigo, não é preciso negá-lo, é que conseguimos. [...] É isto que vos coloca numa situação trágica, única. Sois os primeiros. Sois os primeiros dos modernos”. Depois de Jesus, sem Jesus. Não se trata apenas de um progressivo distanciamento de uma prática religiosa; o sinal por excelência do afastamento de Cristo da vida é uma mortificação das dimensões próprias do humano, uma concepção reduzida da própria humanidade, da percepção de si, um uso reduzido da razão, da afeição, da liberdade, uma censura do alcance do desejo. Giussani utilizou, anos atrás, a metáfora da explosão nuclear de Chernobyl, que produziu esta alteração no ânimo dos homens: “O organismo, estruturalmente, é como antes, mas dinamicamente não é mais o mesmo. É como se fosse um plágio fisiológico”.
Por isso, me perguntava: o cristianismo é capaz de tocar o núcleo duro da nossa mentalidade, ou consegue apenas acrescentar algo de decorativo, de piedoso, de moralista, de organizativo a um eu já perfeitamente constituído, refratário a toda e qualquer interferência? Por isso, durante este ano, frequentemente me voltou à mente o diálogo entre Jesus e Nicodemos, de onde vem o título dos nossos Exercícios: “E havia entre os fariseus um homem, chamado Nicodemos, príncipe dos judeus. Este foi ter de noite com Jesus, e disse-lhe: ‘Rabi, bem sabemos que és Mestre, vindo de Deus; porque ninguém pode fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não for com ele’. Jesus respondeu, e disse-lhe: ‘Em verdade, em verdade te digo que aquele que não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus’. Disse-lhe Nicodemos: ‘Como pode um homem nascer, sendo velho? Pode, porventura, tornar a entrar no ventre de sua mãe, e renascer?’”. É possível, nessa nossa situação, a criatura nova, algo de verdadeiramente novo? Este, para mim, é o maior desafio que o cristianismo tem diante de si agora: se – na modalidade com a qual persuasivamente nos alcançou: o movimento – é capaz de perfurar a crosta do modo com o qual cada um está no real ou se condenou a permanecer estranho, como um apêndice. Se não há mudança no modo de perceber, de julgar a realidade, quer dizer que a raiz do eu não foi investida por nenhuma novidade, que o acontecimento cristão ficou exterior ao eu. Também para nós a fé pode ser uma coisa entre as outras, encaixada, justaposta, que convive com o modo de ver e de sentir de todos. Alguns anos atrás, Dom Giussani dizia – vocês podem ler isso no livro da Equipe do CLU recentemente publicado –: “Todo o argumento da nossa posição de fé pode ser reconduzido exatamente à derrubada desta justaposição, porque Cristo, o acontecimento cristão [...] investe e penetra tudo”. Sem derrubar esta posição, não poderemos perceber a pertinência da fé às exigências da vida.
Cada um de nós pode julgar o trabalho deste ano, e verificar em que medida esta novidade entrou na raiz do próprio eu. Que novidade trouxe? Não são pensamentos, não é uma questão de opiniões, de interpretações: se Cristo entrou como novidade na raiz do nosso eu e determina tudo de um modo novo, trazemos isso conosco no modo de viver o real. Eu vi tantos sinais disso ao longo deste ano, em tantas das nossas comunidades (ao mesmo tempo, há ainda tanto trabalho a fazer, como todos podemos reconhecer na nossa experiência). Todos estes sinais positivos têm um denominador comum: gente empenhada com o seguimento da proposta que nós fizemos. Mas, em tantos surge ainda a pergunta: qual é o trabalho que nos espera? Tantas vezes, realmente, cada um enche a palavra trabalho com as próprias imaginações.
Por isto, queremos continuar esclarecendo o que significa esta falta do humano. Este ano tive que fazer algumas palestras sobre O senso religioso aos noviços dos Memores Domini, e como eu estava sob a pressão do trabalho que temos feito juntos, fiquei tocado com a modalidade com a qual reli alguns capítulos: não como tinha feito em tantas outras ocasiões, ou seja, como parte do percurso para a fé; mas de dentro da fé mesma. Por isso, tomarei a liberdade de retomar alguns capítulos de O senso religioso para nos ajudar a entender como Dom Giussani nos guia no caminho que estamos fazendo.
Mas, antes, temos que olhar no rosto a objeção da qual falávamos no início: para nós, acontecimento e trabalho parecem sempre estar em contraste. Este é um exemplo da distância que, às vezes, percebo entre a intenção de seguir Dom Giussani e segui-lo verdadeiramente. Olhem o que ele diz a todos aqueles que contrapõem cristianismo e trabalho: “Jesus Cristo não veio ao mundo para substituir-se ao trabalho humano [esta afirmação já bastaria], à liberdade humana ou para eliminar a provação humana, condição existencial da liberdade. Ele veio ao mundo para chamar a atenção do homem para o fundo de todas as questões, para a sua estrutura fundamental e para a sua situação real. Todos os problemas que, realmente, pela provação da vida, o homem é chamado a resolver, complicam-se ao invés de se solucionarem se certos valores fundamentais não são salvaguardados. Jesus Cristo veio chamar o homem para a verdadeira religiosidade, sem a qual qualquer pretensão de solução é uma mentira. O problema do conhecimento do sentido das coisas (verdade), o problema do uso das coisas (trabalho), o problema da consciência do que as coisas são (amor) e o problema da convivência humana (sociedade e política), não são justamente direcionados e por isso geram cada vez mais confusão na história dos indivíduos e da humanidade, na medida em que não se fundamentam na religiosidade, na tentativa da sua solução (‘Quem me segue terá a vida eterna e o cêntuplo nesta terra’). Não é tarefa de Jesus resolver os vários problemas, mas chamar a atenção para a postura com a qual o homem, mais corretamente, pode procurar resolvê-los. Cabe a cada homem empenhar-se nesse trabalho, que existe exatamente em função daquela procura”.
E ainda: “A insistência sobre a religiosidade é o primeiro dever do educador, isto é, do amigo, daquele que ama e quer ajudar o homem no caminho rumo ao seu destino. E o humano não existe originalmente senão no indivíduo, na pessoa. Toda a mensagem de Jesus Cristo é essa insistência. Não podemos começar a compreender o cristianismo a não ser partindo dessa sua origem apaixonada pela pessoa humana”.
E como se não fosse suficientemente claro, Dom Giussani observa ainda que a tarefa da Igreja é a mesma: “A Igreja, portanto, não tem como tarefa direta fornecer ao homem a solução dos problemas que ele encontra ao longo do seu caminho. Vimos que a função que ela declara ser sua na história é a educação ao senso religioso da humanidade, e vimos também como isto implica o chamamento a uma postura certa do homem diante do real e das suas interrogações, postura certa que constitui a melhor condição para encontrar respostas mais adequadas para essas interrogações. Acabamos também de sublinhar que a série dos problemas humanos não poderia ser subtraída à liberdade e à criatividade do homem, quase como se a Igreja tivesse de lhe dar uma solução já confeccionada”.
Por isso, a melhor homenagem que podemos oferecer a Dom Giussani no quinto aniversário da sua morte é o nosso seguimento, não apenas intencional, mas real. Poderemos ver, assim, como, cinco anos após a sua morte, ele continua a ser mais pai do que nunca para nós e, se formos verdadeiramente disponíveis, como ele nos gera.
Um gesto destas dimensões não pode ficar em pé sem a contribuição do sacrifício de cada um de nós na atenção aos avisos, ao silêncio, às indicações; este sacrifício é a modalidade do nosso pedido a Cristo de que tenha piedade do nosso nada, que não nos deixe cair no nada também nesses dias. Trata-se da possibilidade de criar um clima de silêncio adequado para que a semente que plantamos hoje, quando escutamos algo, não caia no caminho, não encontrando o terreno para germinar. Porque sem o silêncio tudo desaparece em meio minuto. Impressiona-me sempre que o silêncio nasce exatamente deste acontecimento: a Sua palavra me enche de silêncio. O silêncio não é apenas por uma questão de ordem, é a única resposta adequada para o acontecimento.

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